quarta-feira, 29 de julho de 2009



Os antecedentes da história:
Quando estive nos Estados Unidos em agosto de 2007, a Imigração me prendeu durante horas, sem qualqer exlicação, num certo Orange Level. Este é o codinome para uma sala sem qualquer conforto, cheia de gente de todos os cantos do mundo sendo tratada da forma mais autoritária e arrogante possível.

Ninguém me informou por que estava presa, nem por que fui solta.

Por causa desse incidente, cheguei a São Francisco com quase um dia de atraso, muita raiva e uma Capivara traumatizada.

Estou tendo problemas com a Capivara.

Ela acha que a culpa da minha detenção possivelmente foi sua, por estar traficando animais silvestres, e passou dois dias sem sair da mala.

Ontem foi para a rua mas ficou se escondendo pelos cantos.



O pior é que a Capi veio com muita curiosidade para São Francisco: tudo o que sempre ouviu sobre a cidade falou ao seu coração. Comprou uma roupa nova, e decorou "If you go to San Francisco (be sure to wear some flowers in your head)".

Também fez um trabalho mental muito duro para se convencer a não comer as tais flores.

Agora está convencida de que as flores que quer cantar são outras:



(Para não dizer que não falei de flores)

Uma capivara traumatizada é bicho complicado de lidar. Conversamos muito. Expliquei que, embora anormales, alguns americanos são boa gente; e que, embora SF não seja mais a cidade hippie dos velhos tempos, o espírito da cidade, no geral, continua sendo de paz e amor, nem que seja pelo folclore.

Depois de duas noites no Four Seasons (ela sabe o que é bom e aprecia uma cama confortável e bem feita), a Capi começou a tomar coragem e aceitou dar umas voltas. Não desgrudou de mim e tinha medo das pessoas na rua.



Só ficou mais à vontade quando chegamos a Chinatown, porque é fã do filme e porque lá a língua que menos se ouve é inglês. Não tive coragem de contar pra ela a minha opinião sincera sobre a China, nem de falar dos seus hábitos alimentares.

A Capivara achou Chinatown uma experiência fascinante. Adorou a disposição das lojas, atulhadas de cacarecos do chão ao teto, onde podia se esconder sem dificuldade cada vez que ouvia alguém falando inglês; e ficou besta com a quantidade de besteiras que o ser humano é capaz de inventar, fabricar, transportar para o outro lado do mundo e, sobretudo, convencer alguém a comprar.



Apesar disso continuou rebelde e cuspindo cantando marimbondos.


(We shall overcome)




(Public Enemy, Fight the Power)

Por ela, teria passado o dia enfurnada entre aparelhos de chá de gosto duvidoso e bastões de incenso (devorou vários!) mas como depois de um tempo meu joelho começou a reclamar, concordou em voltar para o hotel.

Descendo a Grant, passamos em frente a um espécie de beco. De repente ela parou, atenta a um barulhinho vindo de trás de umas caixas de papelão. Sentei num dos degraus para descansar enquanto ela investigava. Subi fotos pro blog, respondi emails e, quando me dei conta, um bom tempo tinha se passado.



Nada da Capi.

Fui atrás, e lá estava ela, ainda atrás das caixas, conversando com um bicho que não consegui identificar.

-- Ele não sabe como se chama nem tem idéia do que era, -- explicou. – Também ficou preso no Orange Level quando veio para cá, mas deixaram o coitado sem comida e sem bebida, de modo que está morto.



(Paul Robeson, Nobody Knows the Trouble I've Seen)

Ainda mais traumatizado do que a Capi, o bichinho vivia escondido nas caixas, de onde só saía à noite.

-- Será que podemos levá-lo conosco? – perguntou a Capi. – Por favor? Ele está muito infeliz.

Ele tinha uma caveirinha de gente boa, e contou que passou por maus bocados. Não duvidei; se a Capi, que estava comigo, ainda não tinha se refeito do susto do Orange Level, imaginem um pobre animal desacompanhado -- e agora, ainda por cima, morto.

Prometi ajudá-lo. Ainda tinha espaço na mala.

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